domingo, 2 de setembro de 2007

Como um Túmulo (*) ou Sigilo Profissional - Millôr Fernandes

Um texto muito legal que vi no site do Millôr! A página original do texto é esta aqui.


Teatro
Corisco I

Revisita
ao antigo Teatro Corisco


Como
um Túmulo (*) ou Sigilo Profissional




Peça de costumes, era Pós-Clinton,
em dois atos.



Personagens

Pecador I, Pecador II e Sacerdote-Confessor.


Ato
I


(No
estreito confessionário)



Pecador I - Reverendo, eu engano minha mulher.



Sacerdote - (Na compreensível necessidade
de informar-se melhor para aplicar punições
apenas justas ao pecador) Com quem?



Pecador I - Perdão, prelado, mas sou
um jornalista, tenho que preservar meu segredo profissional.



Sacerdote - Bem, profissional não é.
Até bem amador, com perdão do trocadilho.
Mas como também sirvo sob sigilo do confessionário,
o seu segredo, transmitido a mim, continuará
secreto.



Pecador I - (doido pra entrar na do Padre,
doido pra que o mundo saiba de seus feitos, mas resistindo
- afinal ele trabalha na municipalidade, cobiçam
seu cargo) Eu sei, Santo Homem, mas antigamente as
paredes tinham só ouvidos. Hoje estão
cheias de gravadores.



Sacerdote - (arriscando uma ficha, ou melhor,
uma hóstia):Não vai dizer que foi com
aquela louquinha da sapataria, que já me confessou
horrooooores.



Pecador I - (Babando na gravata, que, aliás,
não porta): A lourinha da sapataria, é?
Aquela gostosa, de tetas grandes e coxas grossas,
que vive exibindo as quatro?



Sacerdote - Essa mesma. (Outra ficha-hóstia)
- Bem, se não foi essa só pode ser a
caixa do supermercado.



Pecador I - (animado) A moreninha dimenor?



Sacerdote - Essa, é. Noutro dia esteve
aqui, durante mais de uma hora... (A melhor ficha,
a melhor hóstia) - Ah, já sei, foi com
a viúva do capitão de corveta que mora
na praça.



Pecador I - Também favorece? O marido
morreu há três meses.



Sacerdote - Mas ela continua muita viva, meu
filho. E depois, o rapaz nem precisava morrer. Ou
foi a...



Pecador I - (saciado) - Não, seu pároco,
não foi com nenhuma dessas. Foi com a dona
do cartório de órfãos. Mas muito
obrigado pelas dicas. Tcháu.



Sacerdote - Tcháu, meu filho, mas não
esqueça três ave-marias e cinco salve-rainhas.
E preserve o sagrado sigilo. Volte sempre que tiver
novidades.


Ato
II


(Logo
à saída do Pecador I entra o
Pecador II)



Pecador II - Seu padre, estou casado só
há dois anos mas tenho que confessar que prevarico.



Sacerdote - Já, meu filho? Com quem?
Não vai me dizer que é com a mulher
desse jornalista que acabou de sair daqui!!



(Pano rápido)



(*) "Como um túmulo"
significa o sigilo último, o sigilo absoluto.
Uma mentira. Os dísticos dos túmulos
geralmente entregam o morto, com ficha, número
de identidade e CGC.



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